quinta-feira, 12 de agosto de 2021
Ebó Literário
Sholastique Mukasonga: Memórias-tecidas de um projeto político genocida na Ruanda de 1994; Colonialismo e Relações Raciais.
“A menina de pés descalços” apresenta-nos uma narrativa autobiográfica, teórica, literária, política e poética de uma Ruanda antes, durante e depois dos processos de colonização, através da memória viva da autora-personagem que dialoga a partir do seu lugar de origem, afetos, experiências e relação com a história, com os aspectos e as características de um povo, seus costumes e crenças, suas relações com a vida com os outros seres viventes, com a natureza. As particularidades das relações familiares, sociais, espirituais além dos acontecimentos políticos que marcaram violentamente a história do lugar, assim como sua trajetória existencial. Em um contexto de sobrevivência onde a morte sombreava os olhos tristes e preocupados daqueles que não entendiam as imposições da sua própria condenação deliberada pela ordem global colonizadora.
Sholastique Mukasonga é uma escritora Tutsi de Ruanda, nascida em 1956, na província de Gikongoro. Atualmente, residente na Nermandia, França. Mukasonga, nome de verdade, como a mesma cita na sua obra ao referenciar o próprio pai como criador do nome, “cujo o significado sempre sujeito a interpretações”. Visivelmente, uma das interpretações possíveis a serem feitas quando tomamos conhecimento das memórias envolventes em detalhes de suas lembranças-vivas, dessa sobrevivente, a força e o respirar da memória projetada pela da modalidade escrita, sinaliza o destino do nome o qual o pai, a comunidade a batizou. Nesse sentido, Mukasonga pode ser entendida como a força do espírito e a performance de uma mulher africana que sofreu todas as mazelas produzidas pelas ações colonizadoras, ou seja, aos interesses do colonialismo, que reencontrou suas forças nas memórias respiráveis do lugar, tratando das coisas irrespiráveis por meio da denúncia pelo compromisso e responsabilidade para os seus e para sua própria comunidade, o que significa, dá voz ao corpo-político, trazendo para o centro do debate, as questões fundantes e os desdobramentos , incisões desse projeto genocida que teve como cenário o lugar que preserva suas raízes, seus afetos, suas lembranças mais profundas e eternizadas, seus sonhos-projetos. Algo evidenciado nos seus discursos, na sua fala em todos os espaços que ocupa e atua, não isolando os casos, os fatos, os acontecimentos. Onde suas publicações tomam posturas que transcendem em relação a matéria significativa, o devir da questão, que não seria uma questão de fazer luto, mas sim, apresentar um contraditório. O que se evidencia em seus discursos e posicionamentos de suas críticas em relação as cenas de medo, angústia, confusão, desespero e morte que desacredita e marca negativamente seu país de origem, sua família e sua história. Sholastique vem ser nome de batismo, porém, nunca chamado dentro de casa. Nessa Obra, “A menina de pés descalços” Sholastique Mukasonga retrata a existência forte e marcante da sua mãe, o livro é uma elegia a sua mãe, onde em vários momentos exerce seu papel, o papel de muitas mulheres africanas e afrodescendentes em várias diásporas espalhadas pelo mundo, a experiência de ser matriarca, a subjetividade admirada, a coragem respeitada. No início do livro, Solastique Mukasonga reclama de não ter tido como atender ao pedido da mãe que, como reza, provocava a consciência dos filhos ao dizer, diariamente, com o desejo de ser entendida, como obrigação, que não se permitisse que seu corpo fosse visto e vestido por estranhos, que esse era um ritual intimo que cabe aos seus. Sobre essa sensação, a autora diz: “Não cobri o corpo da minha mãe”. Logo, provocada pela repetição do exercício da escrita, a seriedade das suas palavras, lembra, serena, de como era a relação da sua mãe com a língua imposta para a comunidade de falantes que tinham como códigos linguísticos, formas de uso e práticas das palavras de uma visão singular, fundamentada nas suas experiências com o lugar, da sua relação com o mundo, inclusive o mundo que abriga os corpos-elementos que tomam e incorporam o universo da linguagem:
“Tenho apenas palavras-palavras de uma língua que você não entendia
para realizar aquilo que você me pediu.
E estou sozinha com minhas pobres palavras e com as minhas frases,
na página do caderno,
tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente.”
( Sholastique Mukasonga)
O quê? Para quê?
Ora, a tensão que se manifesta na presença latente na relação entre vida e morte, mostra que, o recorte veste de forma desajustada algumas vestimentas, logo, o problema. O qual nos permite levantar a seguinte questão: O quê? Pra quê? Pra quem? O real aparecimento de um problema, torna-se a ocasião para que se reflita as necessidades e realidades imediatas que se apresentam e se expressam de forma contraditória devido as suas condições, poder, resistência, as instrumentalizações, estratégias, ideias , signos, sentidos, ou seja, a forma de pensamento dominante que de forma imbricada se impõe aos interesses individuais e coletivos no que diz respeito as dinâmicas dos territórios e tudo aquilo que forma e constitui suas realidades, a comunidade, as sociabilidades. Dessa perspectiva, a fogueira acesa, também, é prenúncio de festividade, de toque de tambor, de encontro-assembleia de Pretos. Um espaço de interação que, foi pensado pelos nossos antepassados como espaços seguros para se refletir estratégias de combate contra o sistema opressor com o objetivo de mudar os rumos que estavam tomando suas vidas e a história.
Sendo assim, a metáfora da fogueira nos ajuda a pensar esse lugar do problema, sua origem e justificativas para sua existência que, conforme retratos falados, debates e discussões, conta, que o início desse projeto genocida praticado em Ruanda, tomou corpo depois da Primeira Guerra Mundial, logo que a Alemanha, o primeiro país a colonizar o território analisado, perdeu suas colônias, entrando em cena a Bélgica. Nesse encontro entre belgas e a comunidade ruandense, Por dentro de tais interações, há as verdades agradáveis, mas também aquelas que para algumas subjetividades, causa um certo estranhamento, normal, se a reação daqueles que se consideram superiores de forma absoluta, diante dessa ruptura, não usassem de valores estéticos e morais desenvolvidos a partir de uma ideia do ser universal, nesse caso, o ser branco europeu que se auto-define civilizado, por isso, sujeito de privilégios. Essa concepção da existência, serviu como elemento fundante para as estratégias de poder desenvolvida pelos belgas em terras africanas, prática já conhecida e perpetuada por todo globo. O que torna Ruanda terra permeável para suas práticas imperialistas de dominação e exploração do homem pelo homem. De entrada, os belgas demonstrara maior interesse pelos tutsis por se aproximarem, segundo eles, aos seus próprios traços, considerados ideais humanos. A estratégia de poder era a classificação e categorização entre grupos, a estratificação social pelo desejo de controle social. Um contexto propicio para esse tipo de pensamento, é o contexto de guerra, e para que haja guerra, tem que ter conflitos e a causa dos conflitos são os surgimentos dos problemas. Então, Nesse momento, os belgas, começam a construí-los, através da ideia de raça, etnia, identidades, segregando corpos e espaços. O imperialismo belga, a estratificação étnica acontece logo após a retirada dos alemães no território de Ruanda. Tornando-se colonizadores do território no início do século vinte, após a primeira Guerra Mundial.
“ Etmologicamente, o conceito de raça veio do italiano razza, que por sua vez veio do latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie. Na história das ciências naturais, o conceito de raça foi primeiramente usado na Zoologia e na Botânica para classificar as espécies animais e vegetais. Foi neste sentido que o naturalista sueco, Carl Von Linné conhecido em Português como Lineu (1707-1778), o uso para classificar as plantas em 24 raças ou classes, classificação hoje inteiramente abandonada. Como a maioria dos conceitos, o de raça tem seu campo semântico e uma dimensão temporal e especial. No latim medieval, o conceito de raça passou a designar a descendência, a linhagem, ou seja, um grupo de pessoa que têm um ancestral comum e que, ipso facto, possuem algumas características físicas em comum. Em 1684, o francês François Bernier emprega o termo no sentido moderno da palavra, para classificar a diversidade humana em grupos fisicamente contrastados, denominados raças. Nos séculos XVI-XVII, o conceito de raça passa efetivamente a atuar nas relações entre classes sociais da França da época, pois utilizado pela nobreza local que si identificava com os Francos, de origem germânica em oposição ao Gauleses, população local identificada com a Plebe. Não apenas os Francos se considerava como uma raça distinta dos Gauleses, mais do que isso, eles se consideravam dotados de sangue “puro”, insinuando suas habilidades especiais e aptidões naturais para dirigir, administrar e dominar os Gauleses, que segundo pensavam, podiam até ser escravizados. Percebe-se como o conceitos de raças “puras” foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que houvessem diferenças morfo-biológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes. As descobertas do século XV colocam em dúvida o conceito de humanidade até então conhecida nos limites da civillização ocidental. Que são esses recém descobertos (ameríndios, negros, melanésios, etc.)? São bestas ou são seres humanos como “nós”.
( Kabengela Munanga; Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB-RJ, 05/11/03).
A primeira iniciativa da colonização belga foi instituir para toda a comunidade colonizada o uso da carteira de identidade como parte da política de governo. Que tinha como principal objetivo, a identificação e classificação entre Tutsis e Hutus. Algo que, de forma naturalizada, condiciona o imaginário social afetado por esse tipo de postura, que seja dito, desviante e alienante. Basicamente, sendo esse o momento primordial em que Hutus e Tutsis começaram a entender a real função da sua categorização, pois foram projetados para uma realidade violenta, a qual seu conhecimento, relações com o mundo foram sequestradas, apagadas, desconectadas dos seus corpos, fragilizando suas potências. Sendo os Twas pigmeus que existiam em terras mais afastadas, os Hutus e Tutsis, tornaram-se os corpos sociais mais interessantes para a manipulação belga. A primeira divisão foi a divisão de território, a partir de uma narrativa que dizia que uns vieram de um lado da África, outros vieram de outra parte que resultou no país. Ocasião onde se alimentava a ideia da diferença construída como problema, pois nessa narrativa, os Tutsis são definidos e desenhados como o “estrangeiro”, “o colonizador”, “o opressor”, onde estimulam a ideologia nacionalista no coração da comunidade Hutu e o desejo alienante de reparação. Dizendo que o país foi formado por Hutus e Twas, que os Tutsis eram invasores que se apropriaram da língua e da cultura daqueles que, na visão dos narradores, araram, plantaram e tinham o direito de colher e usufruir imperativamente de suas terras. Teoria que se revela contraditória, se levarmos em consideração que, como uma população pode ser vista como opressora e mesmo assim adotar a língua e a cultura das pessoas que ela mesma está oprimindo? Por exemplo, é sabido que os europeus chegaram tanto em África quanto no Brasil, impondo sua língua, sua cultura, sua forma de conhecimento. No Brasil, pode se falar outra língua que não seja o português em relação aos acordos oriundos da gramática universal? Quais foram esses acordos? Em que momento da história eles surgiram? Qual a urgência de um sistema monolíngue no Brasil?
Tutsis e Hutus originalmente tinham diferenças de ofícios. Os Tutsis eram criadores de rebanho e pastores. Os Hutus eram lavradores, cuidavam dos campos e das colheitas. Os Tutsis eram caracterizados como altos, gigantes, traços mais “finos”, quase brancos dignos dos critérios hierárquicos ocidentais. O que fez que o governo belga apoiasse as lideranças tutsis que estava no poder na chegada Belga por muitos anos. Nessa dinâmica, os tutsis tinham os melhores empregos, os melhores salários, a melhor qualificação enquanto os hutus permaneciam como um grupo deslegitimado dos seus direitos sendo desumanizado. Em mil novecentos e sessenta e dois (Sholastique Mukasonga tinham exatamente seis anos de idade), Ruanda declarou independência em relação a Bélgica, país já ´pressionado pela comunidade internacional, a partir de então, os hutus que já especulavam o poder, acabava por assumi-lo no país.
Com o imaginário condicionado a ideia dualista dos belgas que se relacionam entre os sentidos de superioridade e inferioridade, permanece na vida e no cotidiano de cada membro da comunidade, assim como as experiências e práticas das relações institucionalizadas, o que dificulta a descolonização do pensamento social. Pelas tensões irrefletidas e atravessamentos externos, a diferença entre Tutsis e Hutus só aumenta. Ocasionando, em mil novecentos e noventa e um, a campanha de ódio promovida pelo governo golpista hutu representado por Juvenal Habyarimanco. onde determinava e incentivava o extermínio de tutsis no país com a criação de milícias que atuavam nas ruas de Ruanda. O espaço vazio dessa narrativa se encontra na ausência de estimulo da autoridade atuante em não reconstruir um país que já havia experienciado uma realidade mais generosa. Se havia uma comunicação externa que o orientava e apoiava, quais eram essas orientações e seus formuladores?
Em Abril, de mil novecentos e noventa e quatro, um incidente muda mais uma vez os rumos da história, cai o avião presidencial ruandês, abatido por mísseis que partiram de direções silenciadas, mas que, a dúvida, causou mais tensões internas. Os tutsis foram automaticamente culpados pelo ocorrido. Logo, todo o discurso de ódio propagado pela campanha foi ainda mais inflamado pelo país e a decisão pela consumação do projeto genocida.
“Mas talvez seja tempo de nomear enfim essa imagem que aparece no fundo do espelho e que o pintor contempla a frente do quadro. Talvez valha a pena fixar de vez a identidade das personagens presentes ou indicadas, para não nos atrapalharmos infinitamente nestas designações flutuantes, um pouco abstratas, sempre suscetíveis de equívocos e desdobramentos: “o pintor”, as personagens, “os espectadores”, “as imagens”. Em vez de prosseguir sem fim numa linguagem fatalmente inadequada ao visível (...)’. ( Michel Foucault; As palavras e as coisas).
Importante ressaltar a responsabilidade de alguns governos como França e os EUA, países acusados de corroborar e se omitirem diante dos conflitos que mataram oitocentos mil seres humanos em Ruanda no ano de mil novecentos e noventa e quatro. Qual o envolvimento de países como a França e EUA nesse processo? A França poderia usar sua influência, força e poder sobre o governo Hutu, mas também por ser um dos membros permanentes do conselho de segurança da ONU, órgão pelo qual exercia uma condição respeitável. Embora, tenha se limitado a retirar apenas seus pares (brancos) da zona de conflito. O EUA, era governado por Bill Clinton, julgou não ser interessante a intervenção ao ponto de deslocar tropas do seu país, posicionamento justificado na perda de vários soldados nos conflitos da Somália. Mas também por ser membro do Conselho de Segurança da ONU e ter recebido relatórios antecipados sobre o que estava para acontecer em Ruanda, torna-se cúmplice do massacre.
Torna-se indissociável, esse tratamento feito para a obra “menina de pés descalços” a tragédia em Ruanda, já que os cenários se entrelaçam e permanecem, mesmo que forçosamente, nas memórias de sua autora-personagem. Em vez de fazer apenas a descrição interiorizada da experiência vivida, não podemos fazer a análise de algumas experiências coletivas e sociais? Provocar aquele lugar do inconsciente onde nossa própria linguagem parece estranha e nos coloca em um estado de incapacidade de reconhecimento. “Na minha lembrança toda violência ficou gravada em uma única só cena”. ( Sholastique Mukasonga). As memórias escritas de Mukasonga, fala sobre respeito, admiração e reconhecimento da sua história-trajetória. Uma forma de ressuscitar através da memória reservada a mãe, aos familiares,aos corpos de milhares de pessoas mortos que não puderam ser sepultadas e reverenciadas nos rituais de passagem. Por isso, Mukasonga não considera sua obra uma elaboração de luto, pois, para ela, essa palavra refere-se a uma coisa natural. Desse modo, não devemos naturalizar um massacre onde vidas de pessoas foram tomadas a força em todos os sentidos possíveis e abomináveis. Sholastique Mukasonga perdeu vinte sete familiares, incluindo seus pais e irmãos menores. O livro “A mulher de pés descalços” foi publicado em dois mil e oito, dez anos após o genocídio em Ruanda. Uma narrativa que fala sobre racismo, sexismo, mas também trata sobre os discursos de ódio e a escalada da descriminação no final do século dezenove e início do século vinte. Um Contexto onde se estava produzindo, através do saber cientifico a construção da ideia de raça, as produções teóricas anti-negro, um contexto globalizante de golpes e contradições. Sholastique Mukasonga resiste através da sua escrita ao se levantar com suas lembranças. Fortalecendo-se através da memória e pela reconstrução subjetiva e intersubjetiva que a reconecta com seu lugar de origem e pertencimento, que evoca a presença dos ancestrais.
“Os ancestrais são também chamados de espíritos. O espirito de um ancestral tem a capacidade de ver, não só o mundo invisível do espírito, mas também esse mundo. Assim, serve como nossos olhos dos dois lados. É esse poder dos ancestrais que nos ajuda a direcionar nossas vidas e evitar os abismos. Espíritos ancestrais podem ver o futuro, o passado e o presente. Eles veem dentro e fora de nós. Sua visão cruza dimensões. Eles tem a sorte de não ter corpos físicos como nós. Sem a limitação do corpo, eles tem a fluidez de um olho que pode se voltar para várias direções e ver de muitas formas. “ ( Sabonfu Somé).
REFERÊNCIA
O Espírito da Intimidade; ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar; Sabonfu Somé.
As palavras e as coisas; Michel Foucault.
UMA ABORDAGEM CONCEITUAL DAS NOÇÕES DE RACA, RACISMO, IDENTIDADE E ETNIA* Prof. Dr. Kabengele Munanga (USP).
quinta-feira, 5 de agosto de 2021
Encruzilhada. Ebò Literário.
A fome vista e pensada desse ambiente-contextual e real,irrefutavelmente, nesse sentido, o jejum toma forma de privilégio, pois, nessa condição e cenário social que viveu Maria Carolina de Jesus, mulher Preta, pobre desabrigada de seus direitos, condição que ainda faz parte da realidade imposta para as pessoas negras,mulheres negras, compondo mais da metade da população brasileira, uma nação que nega sua própria identidade e formação cultural pelo despropósito ode incutir no seio da nação, uma paixão platônica pela eurodescendência. Absorvendo como modelo , os acontecimentos, a história e as tecnologias de poder das grandes potências mundiais e capitais. Um país. que resistiu até o ultimo navio negreiro que conseguiram atracar em terras Tupiniquins. Um país que apaga e nega fatos, personagens, temas, desafios, suas perdas, ou seja, os problemas nunca solucionados, operando por séculos através da história com conceitos e significados depositados nas obras prestigiadas em silêncio nas pinacotecas. “Essa longa história da relação e da reflexão sobre o silêncio, nas suas determinações religiosas ou místicas, contribui bastante para uma tradição em que não se reflete sobre o silêncio na sua realidade significativa. Que formas e movimentos veste o silêncio? O que os silêncios significam na presença, mesmo na ausência das palavrad, gestos e ações?. Então, podemos discorrer brevemente as noções de Silêncio Fundador e a Política do Silêncio. A diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio é que, a política do silêncio produz um recorte entre o que se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo.” (Orlandi; “As Formas do Silencio no Movimento dos Sentidos”; Silêncio, Sujeito; História).
Quais são os fatores, processos, determinações sociais e culturais que destinam a pobreza? Quais as ausências que privam e julgam o que teria luz, brilho e riqueza? Quais os elementos e desígnios que envolvem a condição de pobreza? Quantas faces tem a fome? Que tipo de veneração tem o jejum e suas elevações? De que lugar surge o fôlego para as sensações “irrespiráveis”?
Em suas observações e contribuições, Grada Kilomba, escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar portuguesa reconhecida pelo seu trabalho que tem como foco o exame da memória, trauma, género, racismo e pós-colonialismo, discorre sobre as dores no estômago, a boca que não come, a boca que fala, como símbolo-desejo do colonialismo, feridas nunca tratadas, uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra. “Por que escrevo? Porque tenho de, porque minha voz, em todos os seus dialetos, tem sido calada por muito tempo”. (Jacob Sam-La Rose).
A mensagem propagada por dentro do “Diário de um detento” parte de um lugar real e concreto de visão do aprisionamento, encarceramento da vida, aberturas para a morte. Voz que soa e pede respostas a sensação de dor e desespero causadas pela condenação, algumas sem razão, procedência ou até mesmo julgamento. Vozes de homens e mulheres que compartilham destinos em espaços “irrespiráveis”, degustam e empurram “goela a baixo” as grades-ofertas que alimentam a sensação de morte enquanto, em queda, corpos em destemperança buscam folego e tentativas de resignação. Um estado de jejum forçado das vontades, a fome de tudo sucateada pelo nada, de aparência vazia e estável. “O ser humano é descartável no Brasil. Como modess usado ou bombril. Cadeia guarda o que o sistema não quis. Esconde o que a novela não diz”. Ações que são definidas pelas vistas descabidas daqueles que usam terno e gravata. Definem como “rebelião” e “motim” a reação expressa diante das posturas arbitrárias e genocidas. A ordem colonial permanente não difere mulheres, homens e crianças quando se trata daquelas pessoas que são tratadas como socialmente descartáveis ou oriundas das latas de lixo, dos “Quartos de despejo” (Massacre no Carandiru, A chacina da Candelária. Chacina de Vigário Geral) são marcadas e silenciadas pela história, embora lembradas por aqueles que ainda ocupam estes ambientes de privação, perseguição e tortura.
“A permanência do discurso da tradição no modernismo” demonstra uma resistência dos discursos gloriosos e memorialísticos associados ao pensamento binário e inquietante que transita entre o jejum dos privilégios e a fome de poder. Horizonte possível na literatura do moderno Oswaldo de Andrade “que levou até as últimas consequências a estética da paródia absorvida pela ruptura, pela ironia, pelo deboche e ambiguidade. Um tipo de literatura que se revela em descompromisso com a ética e posicionamento político, ou seja, a responsabilidade assumida em uma discussão. “A história da escrita conformar-se-á a uma lei da economia mecânica: ganhar o máximo de espaço e de tempo através da abreviação mais cômoda; esta nunca terá o mesmo efeito sobre a estrutura e o conteúdo de sentido (ideias) que deverá veicular”. Paz afirma que, “a proposta de tempo vitoriosa em termos da modernidade é a colonização do futuro”. Observação que se corporifica nas palavras e tratamento dado a posterioridade no discurso de Carlos Drumont de Andrade “Hoje faz escuro, estamos atravessando trevas históricas, mas canto porque acredito na utopia do dia que virá. Acredito na colonização do futuro”.
Pela semiose das ideias, todos os contextos-interpretativos, as imagens-discursivas, seus agentes, o signo interpretado e seus interpretantes por definições “ iluminadas” pela ideia do comercio, cultura e tecnologia, necessidade de justificativas valorativas para o que se estava construindo, logo depois, no final do século XVIII, corpo-texto onde não se sustentavam mais as narrativas da cristandade europeia. Percebeu-se a necessidade de novas criações, novas ideias e avaliações para reformulações de novos valores estéticos, políticos e culturais discutidos pela elite branca burguesa global pela eminência de se produzir novas concepções para velhas e escravagistas posturas. Saloma Salomão, músico, historiador, intelectual e ativista negro afirma “ A noção de identidade brasileira é modernista”, lembrando-nos das primeiras produções literárias criadas nos anos vinte, o seu desenvolvimento nos anos trinta e imposta a sociedade brasileira ao longo do cinquenta, sessenta anos. Sua função sistêmica e semântica nas formas de veiculação dos discursos, os posicionamentos políticos e atos de fala tomados pela pseudo-elite-intelectual-cultural brasileira no final do século XIX e início do século XX. com a permanência deterministas de um tempo/espaço o qual o sentido de humanidade foi simplificado de maneira banalizada. Tempo onde as ciências que estão sendo produzidas na Europa, são utilizadas para explicar porque a condição de negros e brancos europeus são diferentes. Problema que será desenvolvido pela ideologia de raça, ou seja, a noção de raça, além, da formação de subjetividades radicalizadas. No século XVIII na Europa Ocidental (Alemanha, França e Inglaterra estavam dominando várias populações de cor, não cristãs. Através de experiências violentas contra pessoas na região da Namíbia. Ora, se algo serve de experimento, logo, independente do resultado, o corpo-substância será modelo, com características em um conjunto de soluções determinantes. Interessante pensarmos a relação egocêntrica de tal experimentação, levando em consideração que, para efeito entre a relação cartesiana de superioridade e inferioridade, é necessário que exista uma relação de poder e nem que seja, minimamente, a presença da resistência. O que nos permite problematizar esse lugar de centralidade do indivíduo branco ocidental cis-hetero padrão da europeidade. Nesse sentido e linhagem filosófica, literária e política, o pensamento cientifico delibera a função, dentro das suas teorias biológicas, neuro-cientificas, propostas sociais e governamentais que em suas práticas endossam e sofisticam as relações senhores-escravos fundamentadas, embricadamente, nas relações de poder e práticas discriminatórias que identificam, inscrevem e orientam os seres, os sujeitos, os indivíduos dentro de uma dinâmica das relações sociais agenciadas pelas sociabilidades. O que é o brasileiro? A nação é a única possibilidade de identificação dos indivíduos e das coletividades? Torna-se evidente e comprovado, através de pesquisas, publicações teóricas, pelas literaturas comparadas, pela filosofia contemporânea-moderna, que mesmo ainda tímida, mostra-se de um pensar necessário, afetado, vibrante e impulsionado que, em particular, a educação brasileira, desde sua criação, evita incluir em sua pedagogia, a ideia da “multicuturalidade”, a lei 10.639 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Levando em consideração a política de igualdade racial assim como o conteúdo de valorização e reconhecimento de iniciativa socioeducativa. Michel Foucault em seus estudos e teorizações, coloca-nos em uma intensa encruzilhada onde se problematiza o conceito e noção de poder, as relações de poder e a questão da ética como temas principais de seus debates e conversas. Trazendo ao centro do debate as formas e comportamental idades dos sujeitos de uma sociedade. Reverenciado, por algumas personalidades, como o um efetivo “ diplomata cultural”, considera de forma altiva e desafiadora as estruturas de poder, as estruturas do poder saber relacionando-as as circunstâncias das solicitações através de diferentes conjunturas, algo que deveria ser comum as sociedades humanas enquanto corpo político que cabe a intuição fundamental e o pensamento sistemático que envolvem os processos sociais e culturais. “ O que é a nossa realidade? ” Em que consiste o nosso presente? ”. Para explicar a história da vida intelectual, um ao outro, da Europa Ocidental depois da guerra, Michel Foucault cita três pontos principais e fundamentais para se pensar o contexto de produção de conhecimento que se pensava em determinada época e contexto, ou seja, as estratégias de permanência e reformas de um ideal iluminista. As configurações desse campo de incidência com as relações do saber poder, o que Foucault chamou de “ modelo científico” ou “ forma da ciência “ perspectiva defendida na sua obra “ As palavras e as coisas”. Cito Foucault pela sensível a proximidade dos seus pensamentos com a construção das representações discursivas e imagens dialéticas da história “ fronteirística”. Dos conceitos reduzidos e significados predeterminados, objetos privilegiados da descrição fenomenológica das definições das experiências vividas, ou uma arvore percebida a partir da janela do seu escritório. Um lugar de questionamento do conceito de ética e sua resistência a ser vista como prática refletida da liberdade, sendo a ética o campo de atuação da liberdade, a liberdade se apresenta como condição ontológica da ética. Dos valores de si para si (moral), assim como as relações com os outros (política). Foucault nos chama atenção para o que ele chama de “ problema histórico” e pergunta: “ Como se pode fazer a história do saber, a história da emergência de um saber? ”. Torna-se mais do que necessário, em todos os âmbitos do conhecimento, que se permita refletir criticamente o conceito de ética sobre as práticas da liberdade, não somente no interior do “ objeto” analisado, mas também suas formas e relações com a exterioridade.
SARAVÁ. AXÉ.
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